Brasil Crónicas 6
Muitos são chamados, poucos são escolhidos
Caros amigos na travessia para o Morro de S. Paulo quase que passei por uma experiência bíblica. Já me via dentro da baleia como Jonas. Mas as minhas provações não tinham terminado. Estava eu posto em sossego a visitar uma igreja paroquial noutra ilha quando fui abordado por uma gentil moça. Vamos organizar agora mesmo uma gincana e um dos jurados não vai aparecer. Precisamos de uma pessoa de fora, imparcial para julgar as provas das duas equipas. O senhor não poderá ajudar? Eu, claro, disse que não, que nada sabia de gincanas e meia hora depois estava sentado no altar esquerdo ladeado pela D. Neide e o Valdemar com a espinhosa tarefa de julgar as provas de duas equipas que dividiam a aldeia numa espécie de jogos florais de inspiração vagamente religiosa. Em confronto estava a Equipa Alfa-Omega e a Equipa do Amor. Recebemos numa folha as regras do jogo. 1- Não é permitido instrumentos musicais nas igrejas. O que não impedia que as claques dançassem e cantassem ao som permanente da batucada. 2- As provas não devem ultrassapar o tempo estipulado. A lista de provas começava com a representação da parábola do filho pródigo, a leitura de um trecho da bíblia e a encenação de um casamento caipira. Estas provas tinham sido preparadas com a devida antecedência. Em seguida vinham as provas relâmpago, anunciadas no momento. O play-back de tchica-tchica bumb-bum de Carmen Miranda e, finalmente, perguntas sobre bíblia e cultura geral. Esta era já a terceira ronda dos jogos e a equipa do Amor levava uma pequena vantagem sobre Alfa-Omega. As claques dançavam em frenesi ao som da batucada. 3- Apenas os chefes das equipes podem contestar as decisões dos jurados. No semblante dos chefes não vi cafagestes, fanatismo ou violência. Tudo parecia, pelo menos de início, um divertimento inocente para a promoção do convívio e da sã camaradagem cristã. Ledo engano o meu.
As provas apostavam no teatro hiper-realista. O filho pródigo saía de uma cabana improvisada, passava por umas bilhas de vinho com um tabuleiro “Taberna”, em seguida abraçava duas mulheres corpulentas de biquini e pesadamente maquilhadas onde pendia outro letreiro “Prostíbulo”. A parábola, como não podia deixar de ser, terminava com a reconciliação da família e um festim. Um bacorinho vivo foi trazido para a nave central apesar dos protestos do bicho. O porco é poupado e nós também. Seguiu-se o poema. Vieram anjos, flores. Vieram declamadores e trovadores. Os casamentos caipiras (saloios) seguiam a mesma fantasia e galvanizaram as claques com os noivos e a noivas travestidos. Ao fim de cada prova as claques olhavam para nós atentas a cada gesto, a cada reacção, tentando ler os meus concíliabulos com a D. Neide e o Valdemar. Ma como julgar as provas? Numa perspectiva de fidelidade aos evangelhos? Deveria dar mais valor à riqueza da encenação ou à conseguida caracterização do prostíbulo? Ou mesmo ao toque naturalista do porco? O que é deveria premiar, o anánás pendente a tapar o olho da Carmen Miranda Alfa-Omega ou a cestas de mamões suspensa sobre a cabeça da Carmen Miranda do Amor? Favorecer a nota artística? Pôr a tónica na parte técnica? Sentia-me patinar neste dilema. D.Neide impassível comia amendoins cozidos. Valdemar, um gaúcho de passagem num programa de desenvolvimento, entretia-se a tirar fotografias com o seu celular topo de gama em vez de avaliar os quadros bíblicos vivos. Acabadas as provas, e com as claques ao rubro, tivemos que deliberar mesmo ali no altar entalados entre o olhar de um S.António violáceo e o olhar inquisidor de duas facções excitadas. Como seria de esperar uma equipa não estava de acordo com o resultado. E como nos jogos bairristas alguém gritou “fora o árbitro”. Vieram os chefes, depois mais representantes e em breve as nossas folhas de pontuação estavam a ser analisadas por uma multidão crítica e opinativa no altar-mor. Haveria ainda inquisição no Brasil? Seria isto um auto-de-fé? À saída fui atacado pelas mulheres do prostíbulo, esquecidas na sua ira que eram “as do Amor”, esquecidas até de perdoar, qualidade tão cristã. Recolhi-me no hotel em pânico.
Passei os dias seguintes na ilha a escolher com critério o meu trajecto pelos bairros Alfa-Omega e evitando as ruas do Amor. Fizemos as malas depressa. Podia vir a ser vítima de alguma forma de justiça popular por prostibulárias em expedição punitiva. Sei lá! Jesus poderá ser amor mas nunca fiando!
Cenas dos próximos capitulos - Que haverá de criativo numa funerária?
Cenas dos próximos capitulos - Que haverá de criativo numa funerária?
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