Brasil Crónicas 3
Morro de S.Paulo
Caros amigos, o Brasil, já se sabe, é um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Talvez por isso a fé, as religiões se encontrem no país com a exuberância da floresta amazónica. Enfim, o calor, a beleza, as crenças propiciam revelações, conversões e uma ou outra aparição. Eu, como agnóstico praticante, julguei-me a salvo de experiências místicas. Pois enganei-me. Já me tinha avisado um amigo alcoólico: “Eu não tinha fé, mas quando fiz a travessia para o Morro e caiu uma trovoada no mar, bem... foi aí que disse: Abílio, afinal Deus existe!” Coitado, pensei, excesso de cachaça antes do embarque.
O Morro de S.Paulo não é, como o nome indica, um morro mas uma ilha e não é em S.Paulo mas ao largo da baía de S.Salvador. Após lauto pequeno-almoço (o tal café da manhã) embarcámos para uma travessia de duas horas. Tempo incerto, avisaram. Equipei-me, por conseguinte, de uma forte dose de espírito laico e determinação para lutar contra eventuais ataques místicos. O catamarã na baía portava-se bem, mas logo que atingimos mar aberto as ondas começaram a bater de lado tipo marteladas num estaleiro naval. A borrasca anunciava-se no horizonte. Turistas vários, todos, refugiavam-se na ré. Enfiavam as cabecitas em sacos de plástico a esvaziar os estômagos. Ouviam-se vagos sons abafados pelo plástico, na melhor tradição do canto gregoriano. Uma hora depois, restava na proa um casal de portugueses (o Dr.Martins e sua esposa, D. Hortense) que retomava a nossa velha tradição dos navegadores. Rostos tranquilos e impassíveis face à força da tempestade e à violência das ondas. Eu e o Patrick não podíamos ficar atrás! Também nós fomos para a proa sacudir a melena encharcada ao vento e segurar o estômago com firmeza. Cruzávamos olhares de solidariedade entre nós e de desdém pelos outros, pobres vítimas da mareação. Cruzávamos olhares de desafio entre nós. Quem aguentará até ao fim? Qual é o elo mais fraco? Quem será o próximo a despejar o orgulho no saco? A D.Hortense ria-se no convés encharcada dos pés a cabeça. O Dr.Martins, feito navegante, debruçava-se da amurada com valentia e garbo. Foi com homens desta fibra que os portugueses chegaram ao Brasil, pensei. O Patrick tranquilo olhava a linha do horizonte. Eu copiava os seus gestos. O doutor perdendo ao mesmo tempo, e com notória rapidez, garbo e valentia dobrou-se em dois e largou o estômago ao vento. O barco encheu-se de uma maresia ácida com aroma de frutas tropicais maceradas. Estúpido! Pensámos. Podia muito bem ter ido lá para trás granitar em vez de empestar o ar. A D.Hortensia continuava a rir. Lá está! Pensei. Cá está outra com uma experiência mística. O Patrick impassível.
A borrasca aumentou. A ilha ao longe desapareceu debaixo da chuva. O próprio mar era uma abstracção. Foi aí que as minhas certezas laicas começaram a vacilar. Pensei: neste momento qualquer revelação será bem vinda. Qualquer coisa: uma Nossa Senhora em cima das ondas, suspensa na proa, mais brilhante que o sol, ou melhor ainda, ao leme do catamarã. Mas nada. Contentava-me já com uns efeitos especiais mais baratinhos: pombas com ramos de oliveira, incandescências, resplendores, coros de anjos, vozes do além, bandos de jesuítas de sotainas esvoaçantes ou mesmo Ratzinger em holograma a cores de sorriso intermitente, enfim, qualquer transcendência. Teria bastado um sinal para me converter. Estava disposto, tal como o tal amigo bêbado a acreditar, a manifestar fé, a abandonar a heresia e a blasfémia. Senhor, estou pronto a gritar hossanas e aleluias! Foi aí que uma força superior do além ou do aquém (entre a traqueia e o esófago) me obrigou a dobrar em dois e procurar o primeiro saco de plástico à mão. Creio que foi aí que a presença divina se manifestou quando me pôs ao alcance das mãos o instrumento do meu destino. O saco de plástico estava roto. Assim, vi a meus pés aquilo que nunca devia ter sido visto. O chamado bolo alimentar escorregou, caiu lentamente e espalhou-se sem cerimónia no convés. Primeiro a papaia, seguido dos sucos tropicais, depois o doce, os pãezinhos de leite e, num assomo de revelação final, golfadas de café com leite.
Além desta tremenda provação tive ainda de lidar com a fúria de todos os elementos, isto é, todos os passageiros e tripulantes. Encolhi-me dentro de um novo saco de plástico e esperei que a humilhação passasse. Admito que cheguei ao Morro de S.Paulo diferente, mais sujo, mais molhado, mais repelente, mas não convertido. O Patrick que nada sofrera, lançava o pior dos olhares: o olhar de piedade. Terei eu confundido acto de contrição com acto de contracção? Pelo sim pelo não fui estudar a topografia da ilha. Quem sabe? Talvez o Morro não seja uma ilha, mas sim uma península ou um istmo, ou um continente à deriva e, nesse caso, eu possa voltar a pé na maré baixa. Haja fé!
Cenas do próximo capítulo - ...três homens enchiam as cuecas de Sandra Sarto de mãos cheias de dólares.
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